Contaminação em Massa
Cidade australiana vive seus últimos dias depois deamianto matar 10% da população
Câncer provocado pela exposição ao material matou 2.000 das 20 mil pessoas queviviam em Wittenoom
Yan Zhuang
Sentado num telhado em uma cidade fantasma nomeio do outback australiano, Mario Hartmann estava esperando asescavadeiras. Ele subia diariamente porque só ali havia sinal de internet. Com acidade mais próxima a uma hora e meia de distância, sabia que tinha de sercuidadoso. "Você só pode tomar 15 cervejas. Com mais de 15, não conseguesubir aqui."Mas riscos muito piores assombram a cidade. No quintal abaixo, o cão pastoraustraliano de Hartmann corria atrás de uma bola, levantando nuvens depoeira que continham uma ameaça invisível: oamianto azul
Apenas uma inalação pode levar asfibras para os pulmões, desencadeando umApenas uma inalação pode levar asfibras para os pulmões, desencadeando umcâncer agressivo e incurável. É por isso que o governo está prestes a acabarcom a cidade, chamada Wittenoom.
Hartmann, de 59 anos, não deu atenção a isso. Olhou para os camposcastigados pelo sol e as cadeias de montanhas vermelhas além da cidade, ondefica sua casa de férias, e comentou: "Como é bonito isso, hein?"
Wittenoom, que já foi um símbolo de prosperidade econômica, é hoje uma dasmaiores tragédias industriais daWittenoom, que já foi um símbolo de prosperidade econômica, é hoje uma dasmaiores tragédias industriais daAustrália, tornada inabitável pelas ações irresponsáveis de mineradoras e negligenciadapor um governo que não fez nada para limpá-la.
A cidade foi construída há muito tempo sob a crescente demanda por produtosde amianto, como revestimentos e isolamento, com a promessa dedesenvolvimento econômico ofuscando novas preocupações com a saúde. Das20 mil pessoas que viveram na cidade ou trabalharam na mina próxima, 2.000morreram de doenças relacionadas ao amianto.
Wittenoom se tornou uma bomba-relógio cancerígena quando os resíduos demineração conhecidos como rejeitos foram trazidos para a cidade para serusados na pavimentação das ruas e em playgrounds e jardins para conter apoeira. Perto da mina, os rejeitos —mais de três milhões de toneladas— foramempilhados como montanhas, escorrendo pelos desfiladeiros.
Sessenta anos depois do fim da mineração, o governo do estado da AustráliaOcidental anuncia que o risco à saúde permanece inaceitavelmente alto.
Durante mais de uma década, houve tentativas de fechar Wittenoom paraimpedir a visita de turistas em busca de emoção. A cidade foi removida dosmapas oficiais e a água e a eletricidade foram desligadas. O governo tentouretirar os residentes indenizando-os. Quando isso falhou, aprovou um projetode lei este ano para adquirir os demais imóveis à força.
No processo, o grupo de residentes que se recusava a sair se transformou emsímbolo de autodeterminação obstinada, lutando pelo direito de apostar aprópria vida.
Mas, no início de setembro, as duas pessoas que ficaram estavam quase prontasa desistir da luta. Uma delas era Hartmann, que aceitou vender suapropriedade há alguns anos, mas ainda retornava todos os anos durante algunsmeses.
LEGADO TÓXICO
Maitland Parker, que cresceu nos arredores de Wittenoom durante seu auge,lembra-se de nuvens de poeira subindo de uma mina em atividade e de criançasindígenas como ele pegando carona na boleia dos caminhões quetransportavam fibras de amianto. Seu irmão contou que mastigava os rejeitoscomo chiclete. Mas as pessoas só perceberam o que estavam respirando depoisde décadas. "A gente não fazia ideia, realmente", disse Parker.
Quando visitou Wittenoom em uma tarde de agosto, usou máscara. Hartmannfez troça: "Por que a máscara, hein?" Parker já foi diagnosticado commesotelioma, câncer causado pela exposição ao amianto. Isso é parte dadevastação de Wittenoom. Embora muita gente que trabalhou diretamentecom o amianto não tenha sofrido de câncer, ele desenvolveu a doença, mesmonunca tendo vivido na cidade nem trabalhado na mina.
O mesotelioma pode ser tratado, mas não curado, e a expectativa de vidadepois do diagnóstico é normalmente de um a dois anos. Mas Parker, de 69anos, continua forte depois de ter recebido seu diagnóstico em 2016. "AindaO mesotelioma pode ser tratado, mas não curado, e a expectativa de vidadepois do diagnóstico é normalmente de um a dois anos. Mas Parker, de 69anos, continua forte depois de ter recebido seu diagnóstico em 2016. "Aindaestou vivo. Deveria estar morto." Com o tempo que lhe sobra, assumiu a missãode descontaminar a cidade.
Depois que a mina fechou, não houve tentativas de reabilitar a terra. O povobanjima, que vive ao redor de Wittenoom há milhares de anos, ficou com olegado. Seus integrantes ainda vão para as cadeias de montanhas e osdesfiladeiros perto da cidade. Dizem que não têm escolha; é sua obrigaçãocultural e espiritual. Mas, toda vez que escolhem, precisam decidir entre seumodo de vida e sua saúde. A Austrália Ocidental tem uma das maiores taxas demesotelioma do mundo, e entre a população indígena do estado o número éainda maior.
Parker afirmou que a responsabilidade era do governo da Austrália Ocidental:"Agora, eles não se importam com o sofrimento." Ele e outros ligados aWittenoom acreditam que o fechamento da cidade anunciará uma retomada daParker afirmou que a responsabilidade era do governo da Austrália Ocidental:"Agora, eles não se importam com o sofrimento." Ele e outros ligados aWittenoom acreditam que o fechamento da cidade anunciará uma retomada daA casa onde Mario Hartmann estava morando, com uma vista panorâmica de Wittenoom; omorador de 59 anos teve de se mudar por ordem do xerife-Matthew Abbott/NYTmineração na área. Eles temem que os avisos sobre a arrogância industrial quea cidade simboliza serão ignorados pela mesma indústria que a destruiu.
Gina Rinehart, a mulher mais rica da Austrália, cujo pai minerava amianto emWittenoom, planeja extrair minério de ferro fora da zona de contaminação etambém dentro dela.
A dor que Parker sente a cada respiração é um lembrete de que seu tempo écurto. "Mas, enquanto eu ainda estiver me movimentando, respirando edefendendo a limpeza da minha região, bom, é isso que vou fazer."
AQUELA QUE RESTOU
Uma casa bem conservada se destaca no terreno baldio com tambores de óleoenferrujados, placas derrubadas e janelas seladas que é Wittenoom. Na portada frente, um aviso educado, rabiscado em uma placa com letra caprichada,cumprimenta os visitantes: "Por favor, não entre. Ainda tem gente morandoaqui. Obrigada."
Uma pessoa, na verdade. Lá dentro, Lorraine Thomas, de 80 anos, a últimaresidente de Wittenoom, estava embalando 40 anos de pertences em caixas:móveis antigos, montanhas de documentos, roupas cujos proprietários haviamido embora fazia muito tempo. "São coisas que colecionei por aí." Foi umprocesso lento. Ela havia perdido um prazo para sair em junho e outro em 31 deagosto. No início de setembro, estava esperando para ver se as autoridades aremoveriam à força.
Enquanto contava os dias, voltou-se para as memórias que tinha da cidade,para onde se mudou com suas três filhas novas depois da morte de seuprimeiro marido. Foi em Wittenoom que conheceu seu segundo marido, Lesley,e construiu uma vida com ele administrando uma loja de gemas e turismo.
Mesmo depois que as filhas partiram, que o marido morreu, que a cidadedesapareceu e que sua casa cedeu, ela jurou que nunca iria embora, relutanteem se separar de um lugar que havia se tornado o memorial de um tempo maisfeliz e de uma vida mais plena. Para permanecer, era preciso serautossuficiente; quando ficou trancada do lado de fora de sua casarecentemente, quebrou uma janela para entrar. Mas, quando sua saúde piorou,admitiu que não poderia ficar para sempre.
Em 8 de setembro, o inevitável aconteceu: os oficiais do xerife chegaram semavisar e despejaram Thomas.
Hartmann também saiu por ordem do governo, levando seu trailer para umdesfiladeiro próximo para passar o resto de suas férias.
E Parker continuará esperando para ver se as lições de Wittenoom serãoaprendidas.