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Talco Johnson e Jonhson: até quando?

Não é de hoje que a empresa Johnson e Johnson tem sido alvo de ações judiciais que objetivam a indenização de consumidores vítimas do uso do talco produzido pela empresa, provável causador de câncer de ovário em mulheres ao redor do mundo [1].

Enquanto os consumidores alegam que o produto contém material cancerígeno, como o amianto, e que seu uso regular na higiene íntima feminina desenvolve câncer de ovário, a referida empresa defende que o talco é feito à base de minerais e que diversas pesquisas científicas comprovam a segurança do produto.

Apesar da defesa da empresa, é curioso mencionar que nos Estados Unidos e no Canadá o produto deixou de ser comercializado no ano de 2020, supostamente em razão de uma queda no interesse dos consumidores acerca do produto decorrente da dúvida causada pelo assunto envolvido nos processos judiciais [2]. Nessa mesma linha de raciocínio, recentemente, a Johnson e Johnson anunciou que promoverá a retirada de seu talco do mercado brasileiro no próximo ano, realizando a mudança da composição do produto para o amido de milho, por ser um insumo mais sustentável [3].

Em que pese o produto em comento não se tratar de um medicamento, levando em conta a quantidade de ações judiciais existentes, a amplitude da utilização do produto no mundo e a possível propagação dos efeitos do dano aos consumidores no tempo, por analogia, pode-se relembrar alguns casos de grande repercussão que movimentaram o cenário jurídico no passado. Nesse passo, vale citar o caso Sindell v. Abbott. Laboratories [4], o qual tratou dos danos causados pelo uso de dietilstilbestrol, o estrogênio sintético (conhecido pela sigla D.E.S). Em suma, nos EUA, diversas empresas vendiam o estrogênio sintético, em larga escala durante anos, até o produto ser retirado do mercado em razão da constatação de que as gestantes que consumiram o produto deram à luz a crianças que tinham tendência a desenvolver vários tipos de câncer. Outro caso que reverberou na sociedade foi aquele que envolveu o uso da talidomida, droga que visava controlar a ansiedade, tensão e náuseas, mas que causava a malformação dos fetos nas gestantes [5].

Na perspectiva brasileira, inicialmente, cumpre lembrar que a Constituição Federal da República revela a segurança como um direito fundamental da pessoa humana, consoante o exposto no caput do seu artigo 5º. Nessa esteira, o Código de Defesa do Consumidor trouxe diversos princípios que norteiam as relações de consumo, cabendo destacar o princípio da segurança e da qualidade apregoado no inciso V do artigo 4º que, ao versar sobre um dos objetivos da política nacional de consumo, ressalta a necessidade de incentivar os fornecedores a criarem meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços. Por conseguinte, o Código de Defesa do Consumidor dedica uma seção específica para tutelar a proteção à saúde e segurança do consumidor, estabelecendo que os produtos colocados no mercado não poderão acarretar risco à saúde ou segurança dos consumidores (artigo 8º), sendo certo que o fornecedor não poderá inserir no mercado um produto que possua potencial risco de dano (artigo 10), sob pena de responder civilmente no caso de descumprimento (artigo 6º).

Nesse contexto, a doutrina considera que os produtos podem manifestar vícios de qualidade por insegurança [6], ou seja, vícios que podem atingir a integridade psicofísica dos consumidores, gerando a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto, nos termos do artigo 12 do CDC. Nesse sentido, para fins de configuração da responsabilidade civil pelo fato do produto, o parágrafo primeiro do artigo 12 dispõe que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera”, revelando que, além da capacidade de gerar o dano, a desconformidade do produto deve violar a legítima expectativa do consumidor [7].

Outrossim, em relação à segurança, considerando a legítima expectativa do consumidor como fiel da balança, a doutrina divide os produtos em três categorias: a periculosidade inerente, a periculosidade adquirida e periculosidade exagerada [8]. Em relação à periculosidade inerente, não há a frustração da legítima expectativa do consumidor porque o risco do produto é previsível, afastando o vício de qualidade por insegurança [9]. Por outro lado, a periculosidade adquirida é aquela em que o risco é imprevisível, não sendo intrínseca ao produto, havendo, por consequência, a superação da legítima expectativa criada pelo consumidor e a configuração do defeito do produto. Quanto à periculosidade exagerada, refere-se ao produto que possui um risco excessivo, com alto grau de periculosidade [10].

Ademais, tendo em vista que o parágrafo terceiro do artigo 12 dispõe sobre as excludentes de responsabilidade civil do fornecedor, destacando a inexistência de defeito do produto como tal, cumpre esclarecer que a doutrina classifica esse vício da seguinte forma: defeitos de fabricação, defeitos de concepção e defeitos de comercialização (ou informação), nos termos do caput do artigo 12. Importa, ainda, expor que o momento em que o produto é colocado no mercado deve ser sempre observado com o escopo de avaliar a legítima expectativa do consumidor [11] e a pretensa violação da sua segurança.

Sobre o defeito de fabricação, o STJ julgou um caso paradigmático que tratava da aquisição de alimento (pacote de arroz) com corpo estranho (conglomerado de fungos, insetos e ácaros) em seu interior, considerando que a exposição do consumidor ao risco concreto de lesão à sua saúde e à sua incolumidade psicofísica se trata de uma causa suficiente para gerar o dano moral pleiteado [12].

Já em relação ao defeito de concepção, o caso do medicamento Sifrol tem sido referenciado pela doutrina, no qual uma consumidora teria desenvolvido uma compulsão patológica para o jogo em razão do uso do fármaco. A propósito, nesse caso, o STJ ressaltou que o defeito ocorreu desde a concepção diante da fórmula do produto e da imprevisibilidade do efeito colateral causado pelo medicamento, intensificada pela falta de informação em sua bula [13]. O caso também tem sido destacado pela doutrina por afastar a excludente do risco do desenvolvimento e entender pela incidência do fortuito interno na hipótese [14].

Por último, vale comentar sobre o caso do sabão em pó Ace, no qual uma consumidora reclamava que o contato com o produto causou dermatite na sua pele. Não obstante a existência de uma anotação simples na embalagem do produto informando que o contato prolongado com a pele deveria ser evitado, o STJ entendeu que a informação prestada não foi suficiente e clara, ocasionando o defeito de comercialização, vício de qualidade por insegurança derivado da ausência de informação [15].

Noutro giro, considerando o talco comercializado pela Johnson e Johnson e a hipótese de que os fatos narrados nas ações judiciais acerca da existência de amianto na composição do produto são verdadeiros, compete analisar essa situação fática conforme os preceitos do ordenamento jurídico pátrio.

A princípio, impende recordar que o instituto jurídico da responsabilidade civil deve ser pautado na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana, fundamentos da Constituição Federal da República, de forma a atender a reparação integral da vítima [16].

Nessa direção, conforme exposto, o CDC aponta que um produto será defeituoso quando for afetada a legítima expectativa de segurança do consumidor. Nesse diapasão, importa mencionar que o talco é amplamente utilizado em cosméticos e produtos de higiene infantis, o que certamente deve ser levado em consideração quando da análise da tutela dos consumidores em razão do agravamento da vulnerabilidade oriunda do perfil daqueles.

No caso em tela, pode-se ventilar que a imprevisibilidade do risco ao usar o talco da empresa Johnson e Johnson caracteriza uma periculosidade adquirida do produto, configurando um vício de qualidade por insegurança em virtude de um defeito de concepção diante da substância supostamente utilizada na composição do produto (amianto). Sobre o amianto, já foi constatado pelos órgãos de saúde que a substância pode causar vários tipos de câncer [17], sendo proibida a sua comercialização em diversos países, inclusive no Brasil [18], devido aos riscos nocivos à saúde humana.

Noutra perspectiva, a ausência de informação na embalagem do produto acerca do amianto em sua composição configuraria um defeito de comercialização, caracterizando, também, a responsabilidade civil pelo fato do produto decorrente do descumprimento do dever de informar.

Na verdade, consoante descrito acima, considerando que o amianto é reconhecidamente cancerígeno para os humanos, parece que o talco em comento enquadrar-se-ia melhor na categoria de periculosidade exagerada, tendo em vista a alta probabilidade de o produto causar um dano ao consumidor. Aliás, parece que o caso cai como uma luva na redação do artigo 10 do CDC: "o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança".

Por qualquer prisma que se observe, sendo confirmado que o talco possui o amianto na sua composição, a potencialidade nociva do produto, conjugada com a quebra da legítima expectativa do consumidor, evidencia a responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto.

De toda sorte, a empresa Johnson e Johnson continua a defender a ausência de defeito do seu talco, ressaltando, por outro lado, que promoverá a retirada do produto do mercado de consumo no próximo ano. Até lá, roga-se para que a fornecedora de produtos esteja certa sobre a segurança do talco e que esse não seja mais um caso de violação ao direito dos consumidores.

[1] Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/johnson-johnson-condenada-a-pagar-21-bilhoes-de-dolares-por-talco-ligado-a-cancer/ Acesso realizado em 17/8/2022.

[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/johnson-johnson-para-de-vender-talco-infantil-nos-eua-e-no-canada/. Acesso realizado em 17/8/2022.

[3] Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/08/16/com-decisao-global-johnson-and-johnson-vai-retirar-talco-a-base-de-minerais-do-brasil.ghtml. Acesso realizado em 17/8/2022.

[4] Sindell v. Abbott Laboratories, (1980) 26 Cal. 3d 588.

[5] Disponível em https://exame.com/mundo/fabricante-alema-de-talidomida-pede-perdao-a-vitimas/. Acesso realizado em 17/8/2022.

[6] "Os vícios de qualidade, por sua vez, dividem-se em vícios de qualidade por insegurança e vícios de qualidade por inadequação. Aqueles são vícios que atentam contra a saúde e segurança do consumidor, contra a sua integridade físico-psíquica, ao passo que estes se caracterizam pela inservibilidade do produto aos seus fins, pelo seu inferior desempenho, violando unicamente a integridade patrimonial do consumidor." (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 90)

[7] BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, p. 183.

[8] Idem, p. 185/189.

[9] "Apelação cível. Consumidor. Ação de indenização por danos morais advindos de produto defeituoso. Produto de periculosidade inerente, inexistência do dever de indenizar. Recurso improvido. 1. Hipótese dos autos em que as apelantes passaram mal após a utilização do produto fabricado pela apelada (inseticida aerossol), alegando que tal fato decorreu de falha no dever de informação, razão pela qual pleiteiam o pagamento de indenização por dano moral. 2. Tratando-se de produto de periculosidade inerente, cujos riscos são normais à sua natureza (inseticida aerossol no qual informado inclusive risco de morte em caso de ingestão) e previsíveis (na medida em que o consumidor é deles expressamente advertido), eventual dano por ele causado ao consumidor não enseja a responsabilização do fornecedor, porquanto não se trata de produto defeituoso. 3. Recurso improvido." (TJ-MA - AC: 00070474720158100001 MA 0125012019, relator: Kleber Costa Carvalho, data de julgamento: 22/8/2019, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/8/2019)

[10] "São considerados produtos defeituosos por ficção. É o caso de um brinquedo que apresente grandes possibilidades de sufocação da criança" (BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, op. cit., p. 189.)

[11] Art. 12 (...) - §1º - III - a época em que foi colocado em circulação. § 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

[12] REsp nº 1.899.304/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 2ª Seção, julgado em 25/8/2021, DJe de 4/10/2021.

[13] "O ordenamento jurídico não exige que os medicamentos sejam fabricados com garantia de segurança absoluta, até porque se trata de uma atividade de risco permitido, mas exige que garantam a segurança legitimamente esperável, tolerando os riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, desde que o consumidor receba as informações necessárias e adequadas a seu respeito (art. 8º do CDC)." (REsp n. 1.774.372/RS, relatora Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18/5/2020)

[14] "Tal afirmação, embora feita em um recurso não submetido ao rito dos “recursos repetitivos”, representa um importante precedente que tende a ser seguido pelos demais Tribunais inferiores e que coloca o Brasil entre os países que não reconhecem os riscos do desenvolvimento como uma excludente da responsabilidade civil do fornecedor de produtos. Representa, assim, um sopro de esperança em meio a tantas incertezas que são observadas, especialmente, na indústria farmacêutica." (CALIXTO, Marcelo Junqueira. "Responsabilidade Civil pelos riscos do desenvolvimento, pandemia de Covid-19 e vacinas." In Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo, coord. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo (et al.), São Paulo, Editora Foco, 2022, p. 336)

[15] REsp nº 1.358.615/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 2/5/2013, DJe de 1/7/2013.

[16] "(...) a Constituição Federal, ao contrário, pôs a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico ao estabelecer, no art. 1º, III, que sua dignidade constitui um dos fundamentos da República, assegurando, desta forma, absoluta prioridade às situações existenciais ou extrapatrimoniais." (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, p. 21/22.)

[17] Disponível em https://www.inca.gov.br/publicacoes/cartilhas/amianto-cancer-e-outras-doencas-voce-conhece-os-riscos. Acesso realizado em 17/8/2022.

[18] ADI 3.470, rel. min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, Julgamento: 29/11/2017, STF.

 

Link da matéria: https://www.conjur.com.br/2022-nov-02/garantias-consumo-polemica-envolvendo-talco-johnson-johnson-quando

Viúva de trabalhador contaminado com amianto receberá reparação de R$ 300 mil

A Eternit S.A. terá de pagar R$ 300 mil à viúva de um trabalhador que desenvolveu asbestose, doença pulmonar causada pela respiração do pó do amianto diagnosticada três meses antes de sua morte, por acidente automobilístico. A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou agravo da empresa contra a condenação, diante da prova do dano, do nexo causal e do descumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho.  

A viúva tentava receber indenização atribuindo à Eternit a responsabilidade pela doença do ex-marido, que trabalhou na empresa por 35 anos e, segundo ela, não recebia equipamentos de proteção adequado, embora estivesse sempre em contato com amianto. Conforme seu relato, ao preparar massa para telhas e caixas d’água e operar guindaste, o pó o cobria todo e entrava nos olhos e boca.

O juízo da 15ª Vara do Trabalho de São Paulo (SP), ao condenar a empresa, levou em conta, entre outras provas, que o trabalhador foi acompanhado pela Fundacentro por 11 anos e teve a doença confirmada em 2007. Outro documento que fundamentou a sentença foi um relatório do Ministério do Trabalho que atestava a existência de amianto no local de trabalho em quantidade acima do limite legal. A condenação foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP).

No agravo pelo qual tentava trazer a discussão ao TST, a Eternit sustentou que não foram comprovados o nexo de causalidade e sua culpa pela doença. Mas o relator, ministro Alberto Bresciani, observou que, segundo o TRT, a empresa descumpriu as normas de saúde e segurança no trabalho, o que configura culpa, e que o TST não reexamina fatos e provas, por força da Súmula 126.  

Bresciani assinalou que, cientes dos riscos do amianto à saúde do trabalhador e ao meio ambiente, 60 países já baniram seu uso e, no Brasil, tramitam várias ações a respeito da matéria. Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu pela constitucionalidade de leis estaduais que proíbem a sua fabricação e comercialização. Segundo o relator, hoje há consenso sobre a natureza cancerígena do mineral e sobre a inviabilidade de seu uso de forma segura, sendo esse o entendimento oficial dos órgãos nacionais e internacionais sobre o tema. Por fim, lembrou que o Brasil é signatário da Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Decreto 126/1991, que trata da utilização do amianto com segurança.

Por unanimidade, a Turma negou provimento ao agravo, inclusive quanto ao valor da indenização.

(Lourdes Côrtes/CF)

Processo: AIRR-272300-37.2009.5.02.0015

O TST possui oito Turmas julgadoras, cada uma composta por três ministros, com a atribuição de analisar recursos de revista, agravos, agravos de instrumento, agravos regimentais e recursos ordinários em ação cautelar. Das decisões das Turmas, a parte ainda pode, em alguns casos, recorrer à Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SBDI-1).

 

Supremo fortalece competência municipal em matéria ambiental

No julgamento do Tema 970 (RE 732.686) da sistemática da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal reforçou a competência dos municípios para legislar em matéria de proteção ambiental, ao declarar a constitucionalidade de leis municipais que proíbem o uso de sacolas plásticas pelo comércio local. A Corte fixou a tese segundo a qual “É constitucional, formal e materialmente, lei municipal que obriga a substituição de sacos e sacolas plásticas por sacos e sacolas biodegradáveis”.

O recente julgado é mais um exemplo do fortalecimento das competências estaduais e locais pela jurisprudência da Suprema Corte.

Beatriz Horbach, em artigo escrito para esta coluna em 2017, registrou os primeiros sinais de mudança nas decisões do STF em matéria de legislação concorrente, até então muito centralizadora na União. Ao explicar o federalismo cooperativo sob a perspectiva alemã, a autora destaca que o Ministro Edson Fachin, em seus votos sobre distribuição de competências, vinha encorajando a exploração de todas as inovações previstas na Constituição de 88, inclusive o federalismo cooperativo, ao defender que ‘que a legislação federal abstenha-se de intervir desproporcionalmente nas competências locais, como também que, no exercício das competências concorrentes, a interferência das legislações locais na regulamentação federal não desnature a restrição claramente imposta por ela (ADI 5356, Rel. Min. Edson Fachin, Red. p/acórdão Min. Marco Aurélio, julg. em 3.8.2016.)’.

Ainda em 2017, ao julgar a ADPF 109, o Ministro Edson Fachin, relator, votou pela constitucionalidade da Lei 13.113/2001 do Município de São Paulo, que proíbe o uso de materiais, elementos construtivos e equipamentos da construção civil constituídos de amianto, tese que restou vencedora, por maioria (ADPF 109, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 30 de novembro de 2017).

Ao explicar a controvérsia constitucional posta em exame, destacou o relator que a dificuldade “consiste em saber se os Municípios podem, por meio de legislação específica, instituir regras que, não obstante em uma primeira mirada aparentem versar sobre produção e consumo, estejam, em realidade, vocacionadas à consecução das promessas constitucionais de manutenção da higidez ambiental e à tutela do direito fundamental a saúde, suplementado a legislação federal e estadual com base na existência de interesse local passível de regulamentação (art.. 30, II e I, CRFB, respectivamente), tal qual a escolha política de desenvolvimento econômico do município”.

Em seu voto, o Ministro Fachin ressaltou que a Constituição de 1988 determina a maximização do exercício das competências para que o Estado cumpra seu papel de pacificação social. Desse modo, a Constituição busca “(i) a otimização da cooperação entre os entes federados; (ii) a maximização do conteúdo normativo dos direitos fundamentais; (iii) o respeito e efetividade do pluralismo com marca característica de um Estado Federado”.

Aplicando o princípio da subsidiariedade ao caso da legislação paulistana que proíbe o amianto, o Ministro Fachin conclui que: “mito embora seja concorrente a competência para a produção, consumo, proteção do meio ambiente e proteção e defesa da saúde, seria simplesmente inconstitucional que o efeito da legislação geral editada pela União, pudesse aniquilar totalmente as competências dos Estados e Municípios da Federação. Apenas se a legislação federal viesse a dispor, de forma clara e cogente – indicando as razões pelas quais é o ente federal o mais bem preparado para fazê-lo – que, no que aqui interessa, os Municípios sobre ela não podem legislar, seria possível afastar a competência municipal para impor restrições ao uso do amianto/abesto.”

A partir da aplicação do princípio da subsidiariedade, portanto, a inconstitucionalidade formal de leis estaduais, distritais ou municipais, por usurpação de competência da União, só ocorrerá se a lei impugnada legislar de forma autônoma sobre matéria idêntica. Se a competência decorrer de coordenação (art. 24) ou cooperação (art. 23), a inconstitucionalidade formal só será verificada se ocorrer ofensa à subsidiariedade.

Importante precedente a permitir a viragem jurisprudencial em comento foi o julgamento da ADI 4060, de relatoria do Ministro Luiz Fux, em 25/02/2015, quando o Tribunal, por unanimidade, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, entendendo que lei local pode fixar o número máximo de alunos em sala de aula. Naquela oportunidade, o Ministro Luiz Fux destacou que a excessiva centralização de competências na União, a inviabilizar a própria autonomia dos entes federados. Na oportunidade, o Ministro Gilmar Mendes, citando o jurista Konrad Hesse, chamou atenção para que a União, ao legislar sobre normas gerais, não o faça de forma exaustiva, devendo deixar espaço para o Estado-membro também exercer sua competência.

Desde então, os precedentes da Corte reconhecendo a constitucionalidade de legislações estaduais e municipais só fazem aumentar.

Especificamente em matéria de competência municipal para legislar sobre meio ambiente, o Ministro Edson Fachin, de forma monocrática, aplicando os fundamentos das decisões da Corte na ADI 4060 e na ADPF 109, julgou procedente o RE 730721 interposto pelo Município de Mogi das Cruzes, pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e pela Câmara Municipal de Mogi das Cruzes contra o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, em controle concentrado de constitucionalidade, declarou a inconstitucionalidade da lei municipal que regulamenta o uso de embalagens biodegradáveis em estabelecimentos comerciais no município de Mogi das Cruzes.

Ao entender pela constitucionalidade da legislação municipal que limite o uso de sacolas plásticas pelo comércio, destacou que:

“À luz exclusivamente do disposto no art. 23, VI, da Constituição (‘proteger o meio ambiente e combates a poluição em qualquer de suas formas’), parece não haver dúvidas, tal como aduzem os recorrentes, que a competência é municipal. De fato, sendo assunto de seu interesse local, e tendo, também, competência para suplementar a legislação sobre esse tema (art. 24, VI, § 1º, § 2º, e 3º, combinado com o art. 30, I, e II, da Constituição), parece ser de interesse a restrição do uso de sacolas plásticas.

(...)

Assim, muito embora seja concorrente e comum a competência para a preservação do meio ambiente, seria simplesmente inconstitucional que o efeito da legislação geral, quer a da União, quer a do Estado-membro, pudesse impor níveis de tolerância à poluição incompatíveis com a saúde da população local. É fato notório que um dos principais impactos ambientais nas cidades é causado pelos resíduos sólidos. Porque é um problema essencialmente ligado ao meio ambiente local, apenas se a legislação federal ou estadual viesse a dispor, de forma clara e cogente – indicando as razões pelas quais é o ente federal o mais bem preparado para fazê-lo -, que os Municípios sobre ela não podem legislar, seria possível afastar a competência municipal para impor limites restrições ao uso de sacolas plásticas.”

O mesmo entendimento, agora de forma colegiada, foi adotado pela Corte no julgamento desta semana. Em sede de repercussão geral, os Ministros entenderam que a norma municipal que determine a substituição de sacolas plásticas não viola os princípios da livre iniciativa ou da proporcionalidade, apenas compatibiliza a proteção ao meio ambiente com os demais princípios constitucionais.

O Recurso Extraordinário foi interposto pelo Procurador-Geral de Justiça de São Paulo contra a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, em sede de controle de constitucionalidade estadual, declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.281/2011 de Marília, que obriga a substituição de sacos e sacolas plásticas por sacos e sacolas biodegradáveis, por vício de iniciativa.

Ao reconhecer a repercussão geral da questão constitucional suscitada no RE 732686, o Ministro Luiz Fux, relator, assinalou a necessidade de manifestação quanto às alegações de inconstitucionalidade material por ofensa aos princípios da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, bem como do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no tocante ao controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e ao meio ambiente (170, V e VI, e 225, § 1º, V, da CF/88).

No julgamento do mérito, o Ministro relator destacou que os municípios possuem competência suplementar para editar leis tratando de proteção ambiental. Observou, também, que a matéria se relaciona ao gerenciamento de resíduos sólidos, interesse predominantemente municipal. Além disso, ponderou que a norma municipal não se opõe à lei estadual sobre o assunto, sendo apenas mais protetiva. Entendeu, inclusive, que o dispositivo municipal apenas normatizou para o plano local a diretriz da política nacional de resíduos sólidos gerados, o que é autorizado pela Lei Federal 12.305/10.

O voto do relator foi acompanhado por todos os Ministros da Corte, indicando, assim, que o fortalecimento das competências municipais tende a se consolidar.

 

Link da matéria: https://www.conjur.com.br/2022-out-22/observatorio-constitucional-stf-fortalece-competencia-municipal-materia-ambiental

Inauguração da Árvore Pulmão, um monumento em homenagem às vitimas do amianto

O evento acontecerá dia 10 de dezembro, às 10h da manhã, na Praça Expedicionário Mário Buratti, em Osasco

O MEMORIAL DAS VÍTIMAS DO AMIANTO em formato de uma árvore-pulmão, de autoria do artista plástico, W. Hermusche, representa a vida, o renascimento, sem, contudo, ignorar o legado de sofrimento de vítimas inocentes, que tombaram e não tiveram a oportunidade de sobreviver aos males do amianto ou asbesto, que lhes interrompeu a respiração e lhes roubou o ar puro tão necessário para a sobrevivência humana.

A ABREA (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto) se irmana às famílias enlutadas e continuará em sua luta para que o amianto seja banido em todo o planeta e que a justiça seja feita para cada uma das vítimas e familiares.

Doamos este monumento à cidade de Osasco com a esperança de não termos mais nenhum doente ou morto pelo cancerígeno amianto.

 

Justiça de São Paulo condena lobistas do amianto por ataques reiterados a Fernanda Giannasi

Por Tania Pacheco

Após dez anos de tramitação do processo na 39ª Vara Cível, a Justiça paulista deu ganho de causa a Fernanda Giannase e condenou o Sindicato dos Trabalhadores da Mineração de Minaçu (GO), o Instituto Brasileiro do Crisotila (IBC) e o jornalista Luiz Carlos Bordoni por ataques caluniosos e difamatórios a sua honra.

A condenação se deu por ofensas veiculadas pelos réus em sites, programas televisivos, boletins informativos do Sindicato dos Trabalhadores e do IBC e no blog do jornalista. Neles, Giannasi passou a ser tratada por adjetivos ofensivos, como “irresponsável”, “autoritária”, “mentirosa” e “leviana”, em referência a sua conduta à frente da fiscalização das empresas usuárias de amianto (taxada de “desvio de função”). Bordoni passou ainda a ofendê-la, comparando-a com o Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels.

Auditora-fiscal do Ministério do Trabalho durante 30 anos e reconhecida nacional e internacionalmente por sua luta em defesa dos trabalhadores e contra os efeitos cancerígenos do amianto, Giannasi terá direito a indenização por danos morais e a direito de resposta nos mesmos veículos utilizados pelos réus para difamá-la.

Na sua decisão, tomada em 31/10/2022, o juiz Celso Lourenço Morgado afirma:

Segundo entendimento do c. STJ, “o direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo”. A jurisprudência é consolidada no sentido de que a atividade da imprensa deve pautar-se em três pilares, quais sejam: (i) dever de veracidade, (ii) dever de pertinência e (iii) dever geral de cuidado. No presente caso, as reportagens criadas ou reproduzidas pelos réus claramente desrespeitaram os pilares em comento, pois no lugar se valerem dos espaços utilizados para propagarem informações e críticas com bases científicas para o debate sobre a questão da utilização do amianto, claramente optaram por atacar e denegrir diretamente a boa reputação de uma representante de posicionamento contrário, com suposições que colocam sob questionamento a sua ética e honestidade, por tais motivos se mostra devida, por todos os réus, a indenização a título de danos morais à autora.”

Este blog foi palco de uma troca de mensagens (via comentários) citada pelo juiz Morgado. Diz ele:

“Não bastasse, tornou o réu Luiz Carlos Bordoni a ofender a autora no sítio “Racismo Ambiental” (racismoambiental.net.br), ao comentar o texto publicado pela autora sob o título “Stephen Schmidheiny: ‘Bill Gates da Suíça ou o ‘Poderoso Chef do amianto’?” nos dias 31.03.2012 e 08.05.2012, novamente comparando a atividade da autora ao nazismo (pp. 121/136).”

O excelente artigo de Fernanda Giannasi pode ser lido aquiAo pé dele, estão postados os comentários. Como se verá, os inúmeros textos do jornalista tiveram de ser por ele posteriormente substituídos por citações do Despacho da então juíza da 39ª Vara Cível, que “deferiu pedido de antecipação de tutela, determinando a retirada das matérias ofensivas no prazo de 5 (cinco) dias”, como ele justifica antes de cumprir o determinado por ela.

A íntegra da decisão do juiz Celso Lourenço Morgado pode ser lida AQUI.

Leia a matéria em: https://racismoambiental.net.br/2022/11/05/justica-de-sao-paulo-condena-lobistas-do-amianto-por-ataques-reiterados-a-fernanda-giannasi/

STJ mantém liminar da Justiça Federal que impede a mineração de amianto em Minaçu (GO)

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) manteve esta semana a liminar que impede o funcionamento da mina do cancerígeno amianto, de propriedade da empresa Sama, do grupo Eternit, funcionando em Minaçu, localizada no Norte de Goiás. O caso da extração do amianto, que provoca graves doenças, como o câncer, vem sendo denunciado há anos pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA), mas parece não ter fim. A fiscal do Trabalho, Fernanda Giannasi, uma das fundadoras da ABREA, informou que a qualquer momento a empresa pode ser notificada para paralisar as suas atividades. 

Segundo Giannasi, os advogados de São Paulo, do poderoso grupo Eternit, estão se movimentando rapidamente para restabelecer a liminar e minimizar os efeitos negativos que a notícia poderá causar no mercado internacional de commodities (minério de amianto). Por decisão do STF em 2017, a exploração do minério ficou proibida no Brasil.  

“Espero que não presenciemos mais uma vez a ocorrência da guerra de liminares, que fecham a mina de manhã e reabrem à tarde. Isto precisa acabar. Não é admissível que a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2017, determinando o banimento do amianto, continue a ser desrespeitada sob os olhares benevolentes dos órgãos do Judiciário e da omissão conivente de nossos parlamentares, com flagrantes conflitos de interesse, e do Poder Legislativo como um todo”, alertou Giannasi. 

Depois da decisão do STF, de acabar com a exploração do amianto no Brasil, a Eternit, através de liminares, tem conseguido a retomada de escavações para extração do amianto crisotila para exportação. De acordo com a empresa, o retorno destas atividades está amparado em uma lei estadual que autoriza o processo. 

Na divisa com Tocantins, Minaçu tem a única usina de amianto da América Latina, a terceira maior do mundo, perdendo apenas para uma instalada na China e outra na Rússia, parceiras no BRICS. Pertencente ao grupo Eternit, ela responde por 13% de toda a fibra comercializada no mundo. Misturado ao cimento, o amianto foi usado principalmente na confecção de telhas e caixas d'água. Com a metade das residências usando tais materiais, o país foi até recentemente o quarto maior consumidor mundial do mineral cancerígeno. A ABREA não deixa dúvidas sobre os malefícios provocados pelo amianto à saúde do trabalhador, com um número incalculável de mortes. 

Leia no BLOG outras notícias sobre os males provocados pelo amianto: em 16/4/2018, “Livro dá voz às vítimas e a luta pelo banimento do amianto no Brasil”; em 01/03/2019, “Fernanda Giannasi e a sua luta para banir o amianto. Ela também já sofreu preconceito”; 02/7/2019, “Banimento do amianto é tema de audiência pública na Câmara dos Deputados”; 19/07/2019, “Associação dos procuradores do Trabalho quer anular Lei Caiado a favor do amianto”; 14/02/2020, “Eternit passa por cima de decisão do STF e anuncia retomada da exploração do amianto, produto cancerígeno”; 16/08/2021, “Cancerígeno amianto: Justiça decide por suspensão imediata das atividades de extração, exploração, beneficiamento, comercialização, transporte e exportação, a pedido do Ministério Público Federal”.

Leia a matéria em: http://taniamalheiros-jornalista.blogspot.com/2022/11/stj-cassa-liminar-que-protegia.html

Meio Ambiente: Entenda por que o porta-aviões São Paulo corre o risco de acabar abandonado em alto-mar

Dois meses após deixar o Rio rumo à Turquia, o porta-aviões São Paulo está de volta ao Brasil, mas ainda sem um desfecho definido. Sem permissão do governo turco para entrar no país, por causa da alta quantidade de amianto no seu interior, o navio precisou refazer toda a viagem de volta, entretanto ainda não recebeu nova autorização para atracar. Enquanto corre a expectativa por uma nova decisão judicial ou até de um novo leilão, há o temor de que a embarcação seja abandonada em alto-mar.

Os compradores do porta-aviões, que está sendo transportado por um rebocador holandês e agora está parado na costa pernambucana, pediram para atracar no Porto de Suape. Mas a Agência de Meio Ambiente de Pernambuco não permitiu, devido ao risco ambiental. Assim, a tripulação, há dois meses viajando, ainda não tem precisão de quando irá descer em terra firme. Enquanto isso, o Ministério Público do Trabalho pediu para a Marinha enviar documentos sobre presença de substâncias tóxicas a bordo.

 

Entenda a situação

No dia 4 de agosto, o porta-aviões, comprado pela empresa turca Sok por R$ 10,6 milhões, deixou a Baía de Guanabara rumo à Turquia, onde seria desmanchado e vendido como sucata, o que poderia render cerca de R$100 milhões. Horas após o início da viagem, uma liminar da Justiça Federal ordenou o retorno do navio, mas a Marinha disse que ele já estava fora das águas brasileiras no momento da decisão. No dia 26 de agosto, o governo turco cancelou a autorização para importação do porta-aviões, por causa da falta de informações precisas sobre a quantidade de amianto, uma substância cancerígena e banida de grande parte do planeta, a bordo, e ele precisou retornar ao Brasil.Um relatório feito no ano passado apontou que o porta-aviões possui 9,6 toneladas de amianto. O mesmo relatório admitiu que só foi possível vistoriar 12% dos compartimentos, e há suspeita de que exista mais amianto do que o declarado. Por isso, a Agência de Meio Ambiente de Pernambuco recomendou que a embarcação, que é transportada por um rebocador holandês, não atracasse em Suape, e a Autoridade Portuária negou a autorização. Além de um porta-aviões demandar muito espaço de um porto, Suape fica a quinze quilômetros de Porto de Galinhas, um paraíso turístico de Pernambuco.

O porta-aviões, que já está na entrada de Suape, precisa achar algum porto para que seja feita a vistoria de integridade do casco, uma medida obrigatória que atesta que não há risco de naufrágio. Só com isso é possível parar em território brasileiro. Na semana passada, quando já estava próximo do Brasil, a Marinha determinou que o porta-aviões fizesse essa vistoria em Suape, pois seria o porto mais perto.

A Agência afirmou que recebeu nesta quarta (5) a solicitação de posicionamento a respeito da atracação e que se posicionou contra "haja vista o risco ambiental pela possibilidade de contaminação por amianto e outras substâncias perigosas. A Agência considerou ainda que a embarcação em questão já teve sua licença de exportação cancelada pelo Ibama e inclusive já foi impedida de navegar e atracar em outras regiões".

Temor de abandono em alto-mar

Fontes que acompanham o caso dizem que a vistoria pode acabar sendo feita em alto-mar. Outra possibilidade seria pedir autorização para atracar no estaleiro de Mauá, em Niterói (RJ). Há até a expectativa de que um novo leilão seja realizado, pois a concorrência do ano passado, que terminou com a oferta vencedora da Sok, esta sendo questionada na justiça. Nas últimas semanas, empresas que foram derrotadas no leilão teriam demonstrado interesse numa nova oferta.

Procurada, a Marinha não se manifestou. A Oceans Prime, agência marítima brasileira contratada pela Sok para tratar dos trâmites da exportação, também não respondeu à reportagem.

— Há o risco de um fim trágico. Temo o abandono do casco — afirmou Fernanda Giannasi, fundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). — Se o impasse não se resolver, o rebocador pode até abandonar em alto-mar. Se afundar, vira um monstro ambiental dentro do mar.

Com a negativa da importação por parte da Turquia, que pediu um novo inventário sobre a presença de substâncias tóxicas, a Abrea acionou o Ministério Público do Trabalho (MPT) para que sejam respeitadas medidas de segurança a trabalhadores que venham a realizar a retirada do amianto do porta-aviões no Brasil.

Por isso, um inquérito preliminar foi instaurado no MPT e, na última sexta, foi realizada uma audiência com a Marinha, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ibama, a Abrea e a Cormack, primeira agência marítima contratada pela Sok, mas que estão em litígio após rompimento do contrato. A Sok e a Oceans Prime, atual agência marítima, não compareceram.

Na audiência, a Marinha afirmou que o porta-aviões já teria sido ficado sem amianto na época de sua compra, em 2000, na França, onde a embarcação foi construída, na década de 1960. Mas, para isso, um navio precisa ser desmontado, e o próprio inventário apontou presença de amianto no ano passado. A Marinha também disse que todos os compartimentos teriam sido inspecionados, o que não corresponde às informações do relatório, e que uma equipe turca fez uma inspeção de radioatividade.

A suspeita sobre radioatividade do São Paulo surgiu porque foram encontradas fontes radioativas no seu navio-irmão, o Clemenceau II. Nos anos 1960, ambos teriam passado por testes nucleares.

— Eu entrei em contato com o Ministério do Meio Ambiente da Turquia e eles negaram que fizeram inspeções nucleares no São Paulo — afirmou Giannasi, que foi responsável pelo programa estadual do amianto.

Procuradores do MPT pediram que a Marinha enviasse as documentações e laudos que comprovem todas as informações prestadas. A apresentação ainda está no prazo.

— Para realizar trabalho dentro do navio, são necessários grandes equipamentos e respeitar as medidas de segurança. É preciso fazer a pressão negativa para que o ar de dentro não saia do navio e, assim, evitar a poluição externa. Além disso, funcionários precisam usar macacões adequados e realizar exames antes e depois do trabalho. Há todo um rigor para que a exposição seja limitada ao máximo — explicou Giannasi.

Situação jurídica indefinida

A liminar que pedia o retorno do porta-aviões foi suspensa em agosto, após manifestação da União dizendo que o navio estava em águas internacionais. No momento, então, não há nenhuma decisão judicial em vigor que obrigue algum destino ao São Paulo. O Ibama, que autorizou a exportação do casco do navio, suspendeu sua autorização após a negativa dos turcos.

A Cormack, que está em litígio com a SOK, pretende pedir o arresto do porta-aviões, assim que ele conseguir atracar no Brasil.

— Não é todo porto brasileiro que vai aceitar o porta-aviões. Porque ele pode colocar em risco a saúde de quem vai trabalhar a bordo. Isso demanda acompanhamento das autoridades — disse Alex Christo, advogado da Cormack.

Outra parte que acompanha o imbróglio de perto é o Instituto São Paulo/Fochs, que desenvolveu um projeto para transformação do porta-aviões em um museu marítimo. Foi o instituto que entrou com ação popular na justiça federal pedindo a anulação do edital do leilão do navio, em 2021. Dessa ação veio a liminar que tentou impedir a saída da embarcação do Brasil.

— Nosso temor é que, da mesma forma que foi feita inspeção técnica do navio após a venda, a empresa turca contrate empresa parcial que venha a beneficiar eles nas novas autorizações. Da nossa parte, estamos movendo ações justamente para que sejam cumpridas determinações do navio voltar ao Rio — disse Emerson Miura, presidente do instituto.

Cronograma dos acontecimentos

  • 30 de maio: É concedida autorização para "exportação com condições" por parte do governo da Turquia
  • 7 junho: O Ibama autoriza a exportação do porta-aviões
  • 4 de agosto: O porta-aviões inicia viagem rumo à Turquia
  • 4 de agosto: Horas após o início da viagem, a justiça federal profere liminar para que o navio retorne, Segundo a Ocean prime, o navio já estava em águas internacionais quando a decisão foi informada
  • 9 agosto: Autoridades turcas pedem informações sobre decisão judicial que impedia a exportação, e um novo inventário de materiais perigosos a bordo.
  • 18 de agosto: A justiça federal, após recurso da União e da Marinha, revogou a decisão liminar que pedia o retorno do navio. O Ibama, então, responde à Turquia que não havia objeção judicial à exportação
  • 26 agosto: A Turquia decide cancelar autorização para importação. Em seguida, o Ibama comunica a Ocean Prime sobre a decisão e suspende a sua autorização de exportação
  • 30 agosto: O Ibama reafirma às autoridades turcas que não havia pendência judicial contra a exportação, mas diz que acata a decisão do cancelamento da exportação. O instituto ainda pede para que o governo turco compartilhe se a Convenção de Basileia (organização internacional que trata de exportação de amianto) tomou alguma medida legal sobre o assunto
  • 7 de setembro: O rebocador holandês mudou o itinerário da viagem, e iniciou o retorno ao Rio de Janeiro, previsto para 2 de outubro.
  • Dia 26 de setembro: Marinha diz para porta-aviões realizar vistoria de integridade em Suape
  • Dia 5 de outubro: Porto de Suape nega atracação por risco ambiental

Relembre o caso

A reconstituição da saga do navio, comprado da França pelo Brasil nos anos 2000 e que teria navegado só 206 dias no Brasil, mostra como o porta-aviões se tornou tecnologicamente defasado e com potencial poluente. Vendido como sucata, poderá render em torno de R$ 100,4 milhões, quase dez vezes mais do que ao valor de venda. A Marinha cogitou outro destino para o São Paulo.

Em 2019, após desistir de um projeto de modernização que custaria R$1 bilhão, procurou especialistas para traçar alternativas de descarte ou reutilização para o porta-aviões São Paulo, na época recém-desativado.

Especialista em transporte marítimo, logistica e construção naval, o engenheiro Jean Caprace, da Politécnica-UFRJ, sugeriu um modelo matemático para indicar o melhor custo-benefício entre as possibilidades de desmonte. A ideia não foi acatada.

— O que mais me surpreende é o interesse de uma empresa estrangeira. Devem ter feito muitos cálculos, mas é um negócio de alto risco, inclusive o de ter mais amianto a bordo que o declarado. Há compartimentos totalmente inacessíveis, que só serão descobertos quando abrirem — avisa Caprace.

Quando ainda era da França, o porta-aviões esteve em frentes de batalha na África, no Oriente Médio e na Europa. Com 266 metros de comprimento e 32,8 mil toneladas, a embarcação, explica Caprace, exige cálculos muito precisos e complexos para determinação de valores de venda. Pelo contrato firmado com a França, o São Paulo precisaria ser esvaziado para ser revendido. Os gastos para transportar a embarcação, que, desativada, passa a ser oficialmente “casco de navio”, atingem a casa dos milhões de dólares.

 

Link da matéria: https://extra.globo.com/noticias/brasil/entenda-por-que-porta-avioes-sao-paulo-corre-risco-de-acabar-abandonado-em-alto-mar-25585457.html

“Jogo de Empurra” do Porta-Aviões São Paulo

Por Laurie Kazan Allen/IBAS - International Ban Asbestos Secretariat/Reino Unido

De quem é a responsabilidade da “lata de sardinhas” * flutuante que é o porta-aviões São Paulo? Com 32.800 toneladas, a antiga embarcação de 266 metros agora se tornou um símbolo da má conduta e criminalidade do governo brasileiro. A Marinha do Brasil, duplicando as ações de sua contraparte francesa (2000)1, esperava livrar-se de uma batata quente tóxica ao empurrar a embarcação para um novo proprietário. Claramente, a frase latina “caveat emptor” (o risco é do comprador) não fazia parte do léxico da Sök Denizcilik, o estaleiro turco que comprou o São Paulo em 2021 por R$ 10,5 milhões (aproximadamente 2 milhões de dólares), apesar de ser provável da embarcação conter amianto, PCBs, tinta de chumbo/cádmio, bem como vestígios de material radioativo.2

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O leilão do São Paulo ocorreu sob um manto de sigilo, ao que parece, das autoridades navais em conluio com funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

Naturais Renováveis (IBAMA), uma agência federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e que é a autoridade competente da Convenção da Basileia no Brasil.

Dado o embaraçoso e altamente divulgado fracasso do Brasil em se livrar do navio na Turquia, antigos inimigos, bem como antigos aliados, firmaram suas defesas enquanto atacavam as dos outros atores dessa pantomima mortal. Em um comunicado de imprensa divulgado em 6 de outubro de 2.022, as autoridades navais reafirmaram que, por terem “seguido com zelo e prudência os processos e procedimentos administrativos”, não tinham responsabilidade pelos muitos problemas que surgiram. De acordo com a Marinha do Brasil:

  • coube a Sök Denizcilik, a atual proprietária do navio, fazer o que fosse necessário para “reestabelecer o processo de exportação”;3
  • a empresa Oceans Prime Offshore, contratada pela Sök Denizcilik, foi responsável pelo cumprimento dos protocolos brasileiros e internacionais;4
  • o IBAMA e a agência ambiental turca tinham responsabilidades conjuntas com os proprietários turcos do navio para “reestabelecer o processo de exportação”.5

A Sök Denizcilik culpou o governo brasileiro por não fornecer um local para o navio atracar quando voltou às águas territoriais brasileiras. Em 5 de outubro de 2022, a Agência de Meio Ambiente de Pernambuco recusou a permissão para o São Paulo atracar no Porto de Suape.6

Em vários artigos, um porta-voz da Sök Denizcilik censurou o governo francês, apontando que a França, “o produtor dos resíduos [tóxicos]… está simplesmente ignorando sua responsabilidade”.7

Em 6 de outubro de 2.022, um e-mail foi enviado por Celal Yigit, proprietário da Sök Denizcilik, a Juliette Kohler, consultora jurídica e de políticas das Nações Unidas, a funcionários das Convenções da Basileia, Roterdã e Estocolmo e Ministério Francês para o Desenvolvimento Sustentável. Foi copiado para mais de duas dúzias de outros endereços de e-mail, incluindo os de funcionários dos governos da Turquia, França, Brasil e das Nações Unidas. O cabeçalho do assunto era: Requisito Urgente de Atracação Segura para o NAe São Paulo. Na mensagem, Yigit reclamou da falta de suporte prático:

“…ninguém está assumindo a responsabilidade, nem ajudando a encontrar um local seguro para atracar o navio. A Marinha sugeriu-nos alguns estaleiros privados, mas todos nos recusaram. Além disso, contatamos vários portos para serviço de atracação, mas nenhum deles está aceitando a embarcação.”

Enquanto isso, em Ancara, o Ministério turco culpou o armador pela falta de um inventário adequado de materiais perigosos.8

Com a artilharia apontada para todos os lados (no original em inglês “brickbats flying”), de acordo com nossas informações, não há marinheiros no São Paulo; já a situação da tripulação do rebocador Alp Center – que está no mar há mais de dois meses - foi praticamente esquecida.9 Uma investigação foi iniciada este mês pelo Ministério Público do Trabalho do Brasil para avaliar as condições de segurança e saúde a bordo. Em 7 de outubro, um carregamento de alimentos, água e mantimentos foi entregue por uma lancha ao rebocador a pedido do proprietário holandês da embarcação; o exercício de reabastecimento exigiu uma viagem de sete horas até o Alp Center, que na época está fundeado “em uma área marítima no litoral do estado de Pernambuco”. Em 10 de outubro de 2022, foi realizada uma reunião organizada pelo MPT para dar andamento às suas investigações. (N.T.: a empresa Sök Denizcilik novamente não compareceu, não mandou representante e nem justificou ausência).

Comentando a situação atual, a porta-voz da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA), Fernanda Giannasi, disse:

“O sigilo sobre quem está no rebocador do Alp Center é apenas mais uma pergunta à espera de resposta. Desde o início desse fiasco internacional, a Marinha do Brasil e o IBAMA optaram por manter a sociedade civil no escuro sobre o processo licitatório, o cumprimento de protocolos nacionais e internacionais e diversas outras questões relativas à exportação de um navio sabidamente carregado de substâncias proibidas em muitos países. A preocupação dos integrantes da ABREA nos levou a contatar os procuradores do Ministério Público do Trabalho, que agora estão atuando para garantir a segurança dos tripulantes do rebocador. A situação do São Paulo é dramática e, embora um naufrágio no mar possa ser a esperança do armador, criaria um desastre ambiental que deve ser evitado a todo custo.”10

11 de outubro de 2.022.

Original em inglês: http://ibasecretariat.org/lka-sao-paulo-blame-game.php

* N.T.: no original as expressões “Blame Game” (jogo de culpa) e “can of worms” (lata de minhocas) foram adaptadas ao nosso vernáculo corrente.

1 O porta-aviões São Paulo, anteriormente conhecido como Foch, foi comprado pelo Brasil em 2.000 da França por 12 milhões de dólares. A Marinha do Brasil diz que o amianto presente no casco do São Paulo não oferece riscos. 6 de outubro de 2.022. https://www.airway.com.br/marinha-do-brasil-diz-que-amianto-presente-no-casco-do-nae-sao-paulo-nao-oferece-riscos/

2 Kazan-Allen, L. Mistério Internacional – Cadê o São Paulo? 9 de agosto de 2.022. http://ibasecretariat.org/lka-international- mystery-where-is-the-sao-paulo.php

Kazan-Allen, L. São Paulo: International Hot Potato. 1º. de setembro de 2.022. http://ibasecretariat.org/lka-the-sao-paulo- international-hot-potato.php

3 Asbestli Gemi Brezilya Açıklarında Bekletiliyor [Navio com amianto retido Brasil]. 9 de outubro de 022. https://www.yeniadana.net/haber/asbestli_gemi_brezilya_aciklarinda_bekletiliyor-76342.html

4 Comunicado de imprensa em PDF. Marinha do Brasil. 6 de outubro de 2022. http://ibasecretariat.org/brazilian-navy-press- release-oct-6-2022.pdf

5 Ibid

6 Pernambuco impede que sucata de porta-aviões com resíduos tóxicos atraque em 5 de outubro de 2.022. https://marcozero.org/pernambuco-impede-que-sucata-de-porta-avioes-com-residuos-toxicos-atraque-em-suape/

Empresa turca critica governo brasileiro por porta-aviões. 6 de outubro de 2022. https://www.poder360.com.br/governo/antigo-porta-avioes-e-recusado-em-portos-brasileiros/

8 Marinha do Brasil diz que amianto presente no casco do NAe São Paulo não oferece https://www.airway.com.br/marinha- do-brasil-diz-que-amianto-presente-no-casco-do-nae-sao-paulo-nao-oferece-riscos/

9 Não há informações oficiais sobre o tamanho da tripulação ou se há brasileiros no Entenda por que o porta-aviões São Paulo corre       o   risco     de          acabar            abandonado       em                    alto-mar.                 7      de      outubro      de      2.022. https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/10/porta-avioes-sao-paulo-retorna-ao-brasil-mas-nao-recebe-autorizacao-para- atracar-em-pernambuco-por-causa-de-risco-ambiental.ghtml

Tripulação do porta-aviões São Paulo recebe mantimentos em alto mar; MPT investiga condições de saúde e segurança dos funcionários. 7 de outubro de 2.022. https://extra.globo.com/noticias/brasil/tripulacao-do-porta-avioes-sao-paulo-recebe- suprimentos-em-alto-mar-mpt-investiga-condicao-de-saude-seguranca-dos-funcionarios-25586515.html

10 E-mail recebido de Fernanda 10 de outubro de 2.022.